O ano em que a Terra parou
Atílio Alencar
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Em 2020, este ano em que a Terra parou, Raul Seixas completaria 75 anos. Não lembro bem quando o conheci, mas levando em conta que minha infância se passou nos anos oitenta - período de altos e baixos na carreira do cantor e compositor baiano -, é bem provável que eu o tenha visto num daqueles programas de tevê que garantiam 15 minutos de sobrevida para astros decadentes.
Raul pode ter despertado minha atenção com a canção do carimbador maluco, naquele vídeo em que voava como um super-herói de terceira categoria, enquanto cantava mensagens subliminares de protesto para crianças. Mas foi apenas anos mais tarde, já em seu ocaso alcoólico, que comecei a sentir os efeitos da presença anárquica desta figura curiosíssima.
Foi ele quem melhor absorveu e reorganizou as heranças do tropicalismo - ainda que negando-o - e de um jeito desaforado colocou no mesmo caldeirão a canção de protesto debochada, os versos ocultistas e os textos sagrados, as odes aos amores românticos ou libertários e os manifestos hedonistas. Raul misturou o rock n'roll, o baião, o folk, o lamento sertanejo, o samba do Recôncavo, a ladainha da capoeira, as profecias de Nostradamus e as epifanias bíblicas. Uma vela para Deus, outra para o Diabo.
RESSURGIMENTO
Longe de ser um consenso entre seus contemporâneos, Raul se recusava a participar do chá de comadres, em que havia se convertido o ambiente da MPB no fim da década de 1970. Com a ditadura militar dando sinais de esgotamento e os artistas outrora combativos cada vez mais apartados da plebe por uma aura esnobe, a ele só restava reivindicar seu papel de bufão e chutar a lona do circo. Nunca se enturmou com os doces bárbaros baianos; adorava ridicularizar o ar blasé e os complicados acordes bossa-novistas de João Gilberto; e enquanto Belchior dizia preferir as coisas reais aos romances astrais, Raul caçoava, dizendo que também ia reclamar para ficar na moda, e não tinha pudor algum em conciliar angústias mundanas com a espera por discos voadores.
Já nos tempos em que seu vício destrutivo pelo álcool havia quase o devastado, Raul ensaiou um retorno. Com um disco novo e momentaneamente revitalizado pelo estímulo da parceria com Marcelo Nova, Raul voltou a tocar na rádio e em trilhas de novela. Durou pouco. No meio tempo entre o ressurgimento triunfal e a parada cardíaca que o vitimou no dia 21 de agosto de 1989, ele invocou o diabo em horário nobre na televisão, subiu ao palco de pileque e riu com a boca escancarada, meio sem dentes, debochando da morte a chegar.
Naquela fatídica manhã, no mês dos cães danados, Raul Seixas deixava o plano físico para se tornar, como em sua canção derradeira, um carpinteiro do universo.
A paixão pelas duas rodas
Fabiano Dallmeyer
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Numa rede social um amigo português fez a seguinte postagem: "Revisitando uma velha paixão, amiga de muitos milhares de km. Construída em tempos idos pelo Mestre Manuel Gago em Estoi... fica a dúvida, dar lhe um tratamento de rejuvenescimento ou optar por uma mais recente?" Falava de sua velha companheiro magrela, uma bike estilo "Caloi 10" montada por um mestre bicicleteiro numa pequena localidade ao sul de Portugal.
Ao ler essa postagem, fiquei pensando sobre a minha primeira bicicleta. Infelizmente, a primeira de todas eu não consigo recordar qual era. O tombo que levei ao saltar um pequeno monte de terra no começo da rua onde morava, que me rendeu uma cicatriz que carrego até hoje em meu braço como a assinatura de uma obra de arte feita pelo piso de cimento em formato sextavado e extremamente rugoso, permanece. Bem como o cinematográfico acidente que me envolvi, ao colidir frontalmente com um Opala que estava estacionado em frente à casa do Antônio, e que por estar disputando um "racha" com amigos não vi o automóvel ali parado.
Ainda lembro do pós-pancada, a suposta marca dos dentes no teto duro do Opala e da dor no joelho que duplicou de tamanho em segundos. Essa história voltava às rodas de conversa por um bom tempo, talvez por isso eu nunca esqueci. Mas essa vida de prodígio das duas rodas não foi em sua totalidade momentos desastrosos.
QUEM SABE UM DIA...
Quando a "faixa nova" que hoje liga Camobi ao centro de Santa Maria ainda não estava finalizada e era interrompida mais o menos no Cerrito, protagonizei a minha primeira grande expedição em duas rodas. Equipado com uma mochila, um saco de salgadinho, um embalagem com suco e muita vontade de desbravar o desconhecido, percorri os 7 quilômetros, até ao final da rodovia, sozinho! Caramba uma aventura e tanto para um pequeno ciclista.
Anos mais tarde, esse tipo de "aventura" se tornou corriqueira. Incontáveis vezes, fui à Nova Palma quando o trecho a partir de Faxinal do Soturno ainda era de chão batido, o que se tornava especialmente divertido em dias de chuva. Algumas vezes era apenas um "bate e volta" para comer um Xis com queijo da colônia e um refri bem gelado que era servido perto da rodoviária. Nessas andanças, já não ia sozinho. Tinha alguns malucos que juntos fizemos muitos km's de estrada, e mais que isso, forjamos amizades que perduram até hoje.
Dias mais tarde, o meu amigo postou: "Limpa, oleada, cabos substituídos... pronta para 30 anos mais tarde voltar às subidas e descidas que tanto prazer me deram correndo o nosso Algarve. Chegou o momento de encostar a btt. Vamos lá voltar à estrada!"
Quem sabe, um dia, eu também volte...